Nos termos do art. 265 do Código de Trânsito Brasileiro, as penalidades de suspensão do direito de dirigir e de cassação do documento de habilitação devem ser aplicadas mediante decisão fundamentada da autoridade de trânsito competente, e no âmbito de processo administrativo, com garantia ao infrator do amplo direito de defesa.
Contudo, na prática administrativa reiterada dos órgãos executivos estaduais de trânsito, em especial do DETRAN/RS, observa-se a ocorrência sistemática de um modelo automatizado e viciado de imposição dessas penalidades, que subverte completamente a lógica do processo administrativo punitivo e compromete a validade dos atos praticados.
Aplicação automática da suspensão do direito de dirigir: onde está o erro?
Após a lavratura do auto de infração de trânsito e a abertura do processo correspondente, o procedimento segue, muitas vezes, sem qualquer ato administrativo formal de aplicação da penalidade, limitando-se o órgão a expedir notificações padronizadas por sistemas automatizados.
Esse procedimento tem se intensificado principalmente:
- Nos casos de não apresentação de defesa prévia, onde o sistema gera diretamente a notificação da penalidade após o decurso de prazo;
- Nos chamados processos únicos, nos quais a penalidade de multa é cumulada com a de suspensão do direito de dirigir, sobretudo nas infrações autossuspensivas.
A notificação não aplica a penalidade: ela apenas comunica
Essa prática representa uma deturpação da essência do ato administrativo sancionador. A notificação de penalidade, prevista no art. 282 do CTB, não é um ato constitutivo da sanção, mas sim um ato meramente informativo.
Ela comunica ao administrado uma penalidade que já deve ter sido aplicada anteriormente por meio de ato administrativo formal, específico, fundamentado e subscrito por autoridade competente.
Penalidade sem ato administrativo: vício insanável no processo
A omissão desse ato prévio, que deve conter a motivação da penalidade, macula de nulidade todo o procedimento, à luz dos seguintes fundamentos:
- Ausência de ato administrativo punitivo válido: sem a prática formal do ato de imposição da penalidade, inexiste decisão propriamente dita. O que há é mera automatização de consequências jurídicas sem manifestação volitiva da autoridade competente.
- Violação ao art. 265 do CTB: o dispositivo exige expressamente decisão fundamentada, não admitindo presunção de motivação sistêmica.
- Inobservância do art. 281 do CTB, que exige que a autoridade julgue a consistência do auto de infração antes de aplicar qualquer penalidade, função que não pode ser delegada a sistemas informatizados de forma cega.
- Ofensa ao devido processo legal administrativo, especialmente no que tange ao princípio da motivação dos atos administrativos (arts. 2º e 50 da Lei nº 9.784/1999) e ao princípio da segurança jurídica.
- Inversão da lógica procedimental: a notificação, que deveria comunicar uma penalidade previamente imposta e fundamentada, passa a figurar como origem do ato punitivo, sem respaldo normativo para tanto.
A eficiência administrativa não autoriza a supressão do devido processo legal
A prática compromete a legitimidade da sanção e viola frontalmente o modelo garantista do processo administrativo, que não pode ser convertido em mecanismo automático de punição, sob pretexto de eficiência.
A eficiência administrativa, como princípio constitucional, não se sobrepõe ao devido processo legal. Pelo contrário, ela deve ser lida em harmonia com os demais princípios da Administração Pública, como legalidade, impessoalidade, moralidade e publicidade (art. 37 da CF/88).
Penalidade sem fundamentação: nulidade absoluta do processo punitivo
Assim, qualquer penalidade de suspensão ou cassação aplicada sem a prática de um ato administrativo formal, motivado e praticado por autoridade competente, é nula de pleno direito.
Essa nulidade decorre não apenas da inexistência de pressupostos legais de validade, mas também da supressão do poder-dever da Administração de fundamentar seus atos sancionatórios, o que afeta diretamente a esfera jurídica do administrado.
Conclusão: automatismo sancionador é incompatível com o Direito Administrativo
Portanto, deve-se reconhecer que a simples expedição de notificações sistêmicas não supre a exigência legal de ato administrativo punitivo, e configura vício insanável na condução de processos sancionadores no âmbito do direito de trânsito.