Introdução
Poucas falhas procedimentais no processo administrativo de trânsito comprometem tanto a legitimidade da penalidade quanto a omissão de um ato básico: a decisão expressa sobre a defesa prévia.
No cenário atual, é comum encontrarmos notificações de penalidade que silenciam sobre esse ponto — ignorando por completo a previsão normativa que torna obrigatória a comunicação do acolhimento ou não da defesa da autuação.
Esse artigo analisa, em profundidade, os fundamentos técnicos que sustentam a tese de nulidade da Notificação de Penalidade (NP) que omite essa informação.
Mostraremos por que tal omissão não pode ser tratada como um mero vício formal, mas sim como um defeito que compromete a própria essência do processo sancionador.
Contextualização Técnica
Vejamos a disposição técnica do Art. 282 do Código de Trânsito Brasileiro que trata da Notificação da Penalidade após a aplicação da penalidade pela Autoridade de Trânsito competente.
Art. 282. Caso a defesa prévia seja indeferida ou não seja apresentada no prazo estabelecido, será aplicada a penalidade e expedida notificação ao proprietário do veículo ou ao infrator, por remessa postal ou por qualquer outro meio tecnológico hábil que assegure a ciência da imposição da penalidade
Analisando o Art. 282 do CTB sob uma perspectiva técnico-jurídica, podemos extrair três premissas fundamentais:
- Condição Suspensiva: A aplicação da penalidade está condicionada a duas hipóteses alternativas: (a) indeferimento da defesa prévia ou (b) não apresentação no prazo legal.
- Ordem Cronológica Vinculante: O dispositivo estabelece uma sequência processual obrigatória - primeiro a análise da defesa (ou constatação de sua não apresentação), depois a aplicação da penalidade.
- Dever de Cientificação: A notificação deve assegurar ciência inequívoca da imposição da penalidade, o que logicamente inclui a informação sobre o motivo que autorizou sua aplicação.
Essa estrutura normativa demonstra que a informação sobre o destino da defesa prévia não é mero requisito formal, mas pressuposto de validade do ato administrativo sancionador.
A Resolução CONTRAN nº 918/2022, que consolidou os procedimentos administrativos referentes às penalidades de trânsito, prevê em seu art. 12, II:
CAPÍTULO IV
DA NOTIFICAÇÃO DA PENALIDADE DE MULTA
Art. 12. A NP de multa deverá conter:
I - os dados mínimos definidos no art. 280 do CTB e em regulamentação específica;
II - a comunicação do não acolhimento da defesa da autuação ou da solicitação de aplicação da penalidade de advertência por escrito;
III - o valor da multa e a informação quanto ao desconto previsto no art. 284 do CTB;
IV - a data do término para apresentação de recurso, que será a mesma data para pagamento da multa, conforme §§ 4° e 5º do art. 282 do CTB;
V - campo para a autenticação eletrônica, regulamentado pelo órgão máximo executivo de trânsito da União;
VI - instruções para apresentação de recurso, nos termos dos arts. 286 e 287 do CTB.
Parágrafo único. O órgão autuador deverá utilizar documento próprio para arrecadação de multa que contenha as características estabelecidas pelo órgão máximo executivo de trânsito da União.
A obrigatoriedade de se informar expressamente na notificação da penalidade a decisão administrativa sobre a defesa apresentada decorre da lógica sequencial do processo sancionador:
o cidadão é notificado da autuação, apresenta sua defesa, e então, logicamente, tem o direito de ser informado sobre a resposta já que lhe está sendo imposta uma penalidade.
O órgão de trânsito não precisa incluir toda a justificativa do julgamento na notificação. Porém, é obrigatório informar claramente se a defesa apresentada foi aceita, rejeitada ou nem mesmo analisada (não conhecimento).
Contudo, o que se vê na prática é uma série de NPs que se limitam a apresentar o valor da multa, data de vencimento e instruções para recurso — omitindo completamente a existência ou o resultado da defesa prévia.
Essa prática infringe frontalmente não apenas a Resolução, mas também o Código de Trânsito Brasileiro (CTB), a Lei nº 9.784/1999 e princípios constitucionais.
Fundamentação e Argumentação Jurídica
1. Violação da Resolução CONTRAN nº 918/2022
O descumprimento do art. 12, II da Resolução nº 918/2022 vicia a Notificação de Penalidade, pois suprime um de seus elementos essenciais.
O CONTRAN, ao editar essa norma, não conferiu faculdade ao órgão autuador, mas sim impôs obrigação objetiva e cogente. A ausência da informação torna a NP incompleta e, portanto, inválida.
2. Ofensa ao Devido Processo Legal (Art. 5º, LV da CF/88)
A Constituição garante ao administrado o direito de ser informado, de forma clara e suficiente, sobre as decisões que o afetam.
A notificação de penalidade que não menciona o indeferimento da defesa prévia impede o contraditório em sua forma substancial, pois o destinatário não sabe se houve apreciação de sua manifestação nem com base em que fundamentos foi penalizado.
3. Desrespeito à Lei nº 9.784/1999
A Lei que rege o processo administrativo federal impõe:
- Art. 50, I – Os atos administrativos devem ser motivados com base nos fatos e fundamentos jurídicos.
- Art. 2º, parágrafo único, VII – É obrigatória a indicação dos pressupostos de fato e de direito da decisão.
- Art. 47 – A Administração deve anular os atos eivados de vício legal.
A omissão quanto à resposta à defesa prévia viola todos esses dispositivos. A Notificação de Penalidade não é um boleto — é o ato que impõe sanção a um cidadão. E, para ser válida, deve ser completa, motivada e formalmente regular.
4. Ruptura do Procedimento Legal (Arts. 281 e 282 do CTB)
O CTB estabelece que a penalidade somente pode ser aplicada após a defesa da autuação ter sido analisada.
Quando a NP ignora essa etapa, acaba por impor a sanção sem a devida comunicação ao infrator, quebrando a linearidade do rito legal.
Análise Crítica
O argumento mais comum por parte das autoridades administrativas é o de que a emissão da penalidade pressupõe o indeferimento da defesa, e que não haveria necessidade de menção expressa a esse fato. Tal alegação, no entanto, inverte a lógica do contraditório.
Quando não há essa informação na notificação, surgem questões importantes: será que a defesa foi efetivamente analisada e julgada pela autoridade competente?
O próprio documento deveria trazer essas respostas de forma clara.
Além disso, a omissão também prejudica o exercício do recurso à JARI, pois impede o condutor autuado de avaliar se a autoridade incorreu em erro material ou processual ao rejeitar a defesa, dificultando uma impugnação fundamentada.
Há quem sustente que a irregularidade seria sanável ou irrelevante — posição que, além de ignorar a literalidade da norma, normaliza a ausência de motivação dos atos de cientificação decorrentes de um processo administrativo sancionador, um caminho perigoso para a segurança jurídica.
Mesmo se considerarmos um vício sanável, é imprescindível que haja a anulação da notificação expedida sem os pressupostos obrigatórios e a expedição de uma nova, conferindo a devida informação ao destinatário acerca do status de julgamento da defesa prévia anteriormente apresentada.
Nesse caso, há possibilidade de se adotar uma estratégia de defesa secundária, possível em razão do decurso do prazo regular para expedição da nova notificação, qual seja, a decadência administrativa da notificação de penalidade.
Aplicação Estratégica
Na Via Administrativa
A ausência da informação prevista no art. 12, II da Resolução nº 918/2022, ao meu ver, configura irregularidade insanável, autorizando o pedido de nulidade da penalidade e arquivamento do processo.
De qualquer forma, caso não seja reconhecida a nulidade absoluta do processo administrativo em razão dessa irregularidade, temos um pedido subsidiário: a anulação da notificação expedida para que seja refeito o ato.
Por estratégia, este pode ser um excelente argumento, tendo em vista a possibilidade de configuração de decadência da NP no intervalo entre o julgamento da defesa, a prática do ato notificatório ilegal, a decretação de sua anulação e a expedição de nova notificação.
Na Via Judicial
Na hipótese de indeferimento administrativo, a tese se sustenta em ação judicial com pedido de anulação da penalidade por ofensa ao devido processo legal.
Há decisões judiciais reconhecendo que a ausência de motivação ou de resposta à defesa prévia torna o ato nulo, por comprometer os direitos fundamentais de defesa e informação.
Conclusão
A imposição de penalidade de trânsito é um ato administrativo punitivo que só se sustenta se for formalmente válido, motivado e processualmente legítimo.
Quando a Notificação de Penalidade omite a informação sobre o acolhimento ou não da defesa prévia, ela não cumpre seu papel informativo nem respeita o devido processo legal.
Não se trata de mero formalismo. Trata-se de respeitar a ordem legal e os direitos de quem está sujeito ao poder sancionador do Estado. Nesse cenário, a nulidade da penalidade não é opção — é consequência jurídica inevitável.