A Prevalência da Verdade sobre a Presunção Administrativa
O que a lei presume, a realidade pode negar — e o Direito deve reconhecer
O auto de infração, como ato sancionador, goza de presunção relativa de legitimidade.
Entretanto, essa presunção não é suficiente para sustentar uma penalidade diante da prova concreta da inexistência do fato infracional.
A legalidade administrativa não tolera sanções baseadas apenas em automatismos ou presunções.
Quando a realidade dos fatos — devidamente comprovada — contradiz a narrativa do auto, a consequência jurídica inevitável é a sua nulidade.
Essa não é uma tese isolada. É a aplicação coerente do que dispõe o artigo 281, parágrafo único, inciso I do Código de Trânsito Brasileiro:
“O auto de infração será arquivado e seu registro julgado insubsistente se considerado inconsistente ou irregular.”
Não basta que o auto tenha sido formalmente emitido. Ele precisa refletir um fato verdadeiro.
E se esse fato não resiste à prova concreta, o processo perde a sua base de sustentação legal.
A amplitude legal das provas particulares no processo sancionador
O Código de Processo Civil, em seu artigo 369, reconhece que as partes têm o direito de empregar todos os meios legais, bem como os moralmente legítimos, mesmo que não expressamente previstos, para provar a verdade dos fatos.
Essa abertura normativa permite que a defesa, mesmo no âmbito do direito administrativo punitivo, se valha de elementos produzidos por iniciativa própria — ou seja, provas particulares — para demonstrar a improcedência da autuação.
Exemplos legítimos de provas particulares incluem:
- Imagens de câmeras de segurança (de condomínios, residências, vias públicas ou estabelecimentos comerciais);
- Registros de geolocalização via GPS ou aplicativos como Google Maps, Waze, Uber, iFood e afins;
- Tíquetes e comprovantes de estacionamento físicos ou digitais;
- Notas fiscais com data e hora de transações realizadas em local diverso;
- Mensagens de WhatsApp, SMS ou e-mails com marca temporal;
- Fotos com metadados de localização e horário;
- Comprovação de presença em evento, consulta médica, curso, reunião ou qualquer outro compromisso incompatível com o cenário descrito no auto;
- Testemunhos presenciais, especialmente documentados por ata notarial ou registrados de forma clara e objetiva.
Esses elementos, quando convergentes e organizados logicamente, produzem um conjunto robusto e apto a desconstituir a infração imputada, mesmo que esta tenha sido lavrada de forma automática ou sem abordagem.
O valor jurídico da prova documental e digital na desconstrução do AIT
O artigo 422 do CPC estabelece que qualquer reprodução mecânica, como fotográfica, digital, eletrônica ou audiovisual, possui aptidão probatória plena, desde que não impugnada ou, se impugnada, que se prove sua autenticidade por meio de perícia ou certificação.
Ademais, o artigo 424 reforça que as cópias de documentos particulares têm o mesmo valor probante que os originais, desde que certificadas ou não impugnadas.
Portanto, o uso de prints, vídeos, mapas, comprovantes, conversas e registros digitais é plenamente admitido, desde que apresentem autenticidade verificável e contextualidade coerente com os fatos narrados.
Isso amplia significativamente as possibilidades de defesa contra autos de infração lavrados com base em presunção sistêmica, sem observação direta da conduta.
A ausência de abordagem e o peso da contraprova objetiva
Não se trata de afirmar que todo auto sem abordagem direta é nulo. Longe disso.
Mas quando há ausência de abordagem e a parte apresenta elementos que provam, de forma objetiva, a inexistência do fato, a autoridade administrativa não pode se omitir da análise técnica e detalhada dessa prova.
A recusa em reconhecer provas legítimas, apenas porque não foram produzidas sob controle estatal, revela postura autoritária e viola diretamente os princípios da legalidade, razoabilidade, proporcionalidade e eficiência.
A omissão em examinar essas provas configura vício de motivação — e gera nulidade decisória, tanto em sede administrativa quanto judicial.
Antecipação e Superação dos Argumentos Contrários: A Presunção Não é Absoluta, e a Prova Particular É Capaz de Derrogá-la
Dentre os argumentos utilizados para manter a validade de autos de infração mesmo diante de prova particular estão:
- A presunção de legitimidade e veracidade do ato administrativo, que atribui fé pública aos documentos produzidos pelo Estado;
- A suposta fragilidade de provas oriundas da parte interessada;
- A ausência de fiscalização direta sobre os meios de obtenção dessas provas;
- E a alegação de que apenas prova técnica ou pública seria suficiente para afastar a presunção estatal.
Tais fundamentos, embora recorrentes, não resistem à interpretação sistemática e constitucional do Direito Probatório contemporâneo, especialmente em sede de defesa no processo sancionador.
1. A presunção de legitimidade é relativa, não absoluta
A doutrina majoritária e a jurisprudência pacífica reconhecem que a presunção de veracidade dos atos administrativos é sempre iuris tantum, podendo ser afastada mediante prova em contrário.
O artigo 374, IV, do CPC reforça esse princípio ao permitir a elisão de presunções legais mediante contraprova.
2. A origem privada da prova não reduz sua força jurídica
A validade da prova não depende de quem a produziu, mas de sua coerência, autenticidade e capacidade de demonstrar o fato.
O artigo 369 do CPC deixa claro que a origem da prova não condiciona seu valor probatório, desde que lícita e moralmente legítima.
3. O formalismo excessivo compromete o contraditório e a razoabilidade
O processo sancionador exige flexibilidade compatível com a realidade da defesa.
Impor à parte a necessidade de produzir prova pública ou pericial para afastar um auto de infração é desproporcional e contradiz a estrutura principiológica do processo administrativo.
4. A omissão do órgão em rebater tecnicamente a prova reforça sua validade
Se a parte apresenta prova coerente e o órgão autuador não a impugna tecnicamente, a presunção do auto perde força.
O silêncio administrativo diante da prova legítima atribui a ela autoridade suficiente para gerar dúvida razoável — o bastante para afastar a sanção.
A lógica da anulação: encadeamento racional da tese jurídica
A estrutura que conduz à nulidade do auto é firmemente sustentada em cinco pilares legais e lógicos:
- O fato é o fundamento do ato sancionador.
- A prova fática goza de primazia sobre a presunção.
- A ausência de impugnação específica valida a prova documental.
- O art. 281 do CTB exige o arquivamento do auto inconsistente.
- A inobservância dessas premissas configura ilegalidade e nulidade absoluta.
Conclusão: O Direito não presume contra a realidade — reconhece a sua força
A verdade pode não estar no auto.
Pode estar no celular, no recibo, na câmera, no GPS.
E se está ali — clara, objetiva e legítima — deve ser reconhecida pelo sistema jurídico.
O cidadão tem o direito de provar que não cometeu a infração.
E o Estado tem o dever de reconhecer essa prova quando ela é clara e consistente.
Porque o Direito não existe para manter formalidades.
Existe para garantir justiça.