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O Invalidade do Processo Único Aberto pelo Detran/RS: Inexistência do Ato de Aplicação da Suspensão do Direito de Dirigir

Introdução

No contexto do direito administrativo sancionador, especialmente nas infrações de trânsito, a validade das penalidades impostas pelo Estado requer o cumprimento rigoroso das etapas procedimentais estabelecidas em lei.

A ausência do ato formal de aplicação da penalidade pela autoridade competente compromete definitivamente a higidez do processo, mesmo quando precedida de atos preparatórios, como notificações e trâmites administrativos.

Esta artigo analisa a inconstitucionalidade e ilegalidade da aplicação presumida da penalidade de suspensão do direito de dirigir quando ausente o ato administrativo próprio da autoridade competente.

Mais que mera violação formal, tal prática representa uma ruptura com os princípios estruturantes do Estado de Direito, do devido processo legal, da legalidade e da motivação dos atos administrativos.

I. O Ato Administrativo de Aplicação da Penalidade como Elemento Constitutivo da Sanção

A sanção administrativa, assim como qualquer manifestação do poder punitivo estatal, só existe juridicamente se for aplicada por ato expresso da autoridade competente.

Em matéria de penalidades de trânsito, essa exigência está claramente estabelecida no art. 265 do Código de Trânsito Brasileiro, que determina:

“As penalidades de suspensão do direito de dirigir e de cassação do documento de habilitação serão aplicadas por decisão fundamentada da autoridade de trânsito competente, em processo administrativo, assegurado ao infrator amplo direito de defesa.”

Não há espaço para presunções. O ordenamento jurídico brasileiro não admite a existência de penalidade "implícita", tampouco permite a substituição do ato de aplicação por meras notificações expedidas sem base em decisão formal.

A penalidade não se presume, se aplica — e essa aplicação deve respeitar rigorosamente o devido processo.

II. A Lógica Procedimental Prevista no CTB e sua Interpretação pelo STJ

Conforme sedimentado pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ), notadamente nos precedentes REsp 1.975.036/GO, EREsp 711.965/RS e REsp 1989117/AC, o processo sancionador de trânsito possui estrutura obrigatória, sob pena de nulidade do ato final. Essa estrutura compreende, no mínimo:

  1. Lavratura do auto de infração (art. 280 do CTB);
  2. Notificação da autuação (com prazo mínimo de 30 dias para defesa);
  3. Julgamento da consistência do auto (art. 281 do CTB);
  4. Ato de aplicação da penalidade pela autoridade competente;
  5. Notificação da penalidade (art. 282 do CTB);
  6. Abertura do prazo para recurso administrativo (arts. 288 e 290 do CTB).

A Súmula 312 do STJ reforça que são duas notificações obrigatórias: a primeira relativa à autuação e a segunda, decorrente da aplicação formal da penalidade.

Logo, sem decisão de aplicação, não há o que notificar — e, por consequência, o processo é nulo.

III. A Impossibilidade de Substituição do Ato de Aplicação pela Notificação

A notificação da penalidade, por essência, não é o ato que a aplica. Trata-se de mero meio de comunicação da penalidade já imposta. O STJ, ao julgar o REsp 1457255/PR, destacou:

“A motivação dos atos administrativos é obrigatória e irrecusável. Deve ser apresentada anteriormente ou concomitante à prática do ato, sob pena de invalidade e fraude ao devido processo.”

Portanto, permitir que a notificação suprimisse o ato de aplicação — ou fosse utilizada como substituto — é inverter a lógica do sistema jurídico e permitir a imposição de penalidades sem controle, sem motivação e sem decisão válida.

IV. A Pergunta Central: Como Validar uma Penalidade que Não Foi Aplicada?

O cerne da controvérsia pode ser resumido em uma pergunta de valor retórico, lógico e jurídico:

Se a autoridade de trânsito não aplicou a penalidade, quem a aplicou?

Não se trata de mera provocação, mas de um ponto essencial. O processo administrativo de trânsito é regido por normas cogentes.

Apenas a autoridade de trânsito pode aplicar penalidades, conforme o art. 22, inciso VI, do CTB. Logo, na ausência desse ato, não há penalidade que possa ser considerada existente ou eficaz.

A tentativa de legitimar um processo que resulta em suspensão da CNH — sem ato administrativo que a aplique — viola a própria estrutura do direito administrativo sancionador.

V. O Risco de Insegurança Jurídica e Erosão da Legalidade

Permitir que penalidades sejam presumidas apenas com base em notificações, ou sustentadas por pareceres técnicos extemporâneos anexados à contestação judicial, abre um precedente perigoso.

Um Estado que aplica sanções sem atos formais e motivados compromete:

Aceitar tal prática é colocar em xeque o princípio republicano, a impessoalidade e a moralidade administrativa.

Conclusão

O direito de dirigir somente pode ser suspenso mediante ato administrativo expresso, fundamentado e anterior à sua execução.

Na ausência desse ato, qualquer notificação ou anotação de penalidade é juridicamente inválida.

O ordenamento jurídico brasileiro exige não apenas o cumprimento formal de etapas, mas também a efetiva prática dos atos essenciais ao exercício do poder sancionador.

A validação de penalidades não aplicadas viola tanto o CTB quanto os princípios basilares do Estado Democrático de Direito.

O Judiciário tem o dever constitucional de corrigir tais distorções, restaurando a coerência do sistema jurídico e reafirmando um princípio fundamental: não há penalidade válida sem autoridade que a tenha, formal e motivadamente, aplicado.