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Julgamentos Administrativos Automatizados e o Erro Sistemático na Declaração de Intempestividade de Recursos

No âmbito dos processos administrativos de trânsito, especialmente aqueles voltados à imposição de penalidades como a suspensão ou a cassação do direito de dirigir, observa-se um padrão sistemático de automatização que compromete garantias constitucionais elementares.

Um dos exemplos mais recorrentes dessa disfunção é a declaração automática de intempestividade de recursos ou defesas tempestivamente protocolados pelos condutores, em razão de erro de contagem de prazo por parte do próprio órgão de trânsito.

Erro na contagem de prazos e sua consequência

A prática ocorre, geralmente, quando o sistema do DETRAN estabelece como termo final do prazo recursal um dia não útil.

Ocorre que, nos termos do art. 184 do Código de Processo Civil e da Resolução CONTRAN nº 918/2022, prazos que se encerram em dias não úteis devem ser prorrogados para o primeiro dia útil subsequente.

A inobservância dessa norma, somada à ausência de qualquer verificação manual por parte do órgão, resulta na invalidação sumária do direito de defesa do administrado.

Essa conduta viola frontalmente os princípios do contraditório, da ampla defesa e do devido processo legal.

Ilegitimidade do julgamento automático

Não é o sistema que detém competência legal para declarar intempestividade. Tampouco é o DETRAN, como órgão autuador e parte interessada no processo sancionador, quem possui autoridade para julgar em definitivo a admissibilidade do recurso ao CETRAN, instância recursal autônoma.

O máximo que se poderia admitir seria uma anotação da suposta intempestividade e o posterior encaminhamento do recurso à instância competente, para que esta sim, com independência funcional, avaliasse a admissibilidade e o mérito da insurgência recursal.

Jurisprudência que reforça a nulidade

Essa lógica é reforçada por precedentes jurisprudenciais.

No Recurso Inominado Cível nº 1024689-02.2021.8.26.0602 (TJSP), reconheceu-se a nulidade dos atos praticados após a interposição do recurso considerado intempestivo pelo DETRAN, uma vez demonstrada a observância do prazo legal pelo recorrente.

De forma semelhante, o TRF-4, no AC nº 5001253-04.2020.4.04.7205, reconheceu a tempestividade da defesa prévia indevidamente considerada extemporânea, determinando a retomada do processo a partir da análise da peça defensiva.

Vício insanável e nulidade absoluta

Trata-se, portanto, de erro administrativo que invalida o processo desde o momento em que a defesa ou o recurso não são apreciados. Esse vício é insanável.

Nos termos da Súmula 473 do STF, atos administrativos eivados de nulidade não produzem efeitos jurídicos válidos e podem ser desconstituídos a qualquer tempo.

Não se trata de nulidade relativa – o ato é nulo de pleno direito, por vício essencial na forma de condução do procedimento, o qual compromete sua higidez desde a origem.

Consequências graves para o administrado

As consequências dessa sistemática são graves. Um condutor pode ser considerado suspenso ou cassado indevidamente, vir a ser autuado por dirigir com a CNH supostamente suspensa, ter o veículo removido, responder criminalmente por desobediência ou direção ilícita, sofrer restrições administrativas e até ser privado de sua liberdade por um erro facilmente evitável com mínima diligência técnica.

Nesse cenário, não se pode afastar a responsabilização objetiva do Estado por danos materiais e morais decorrentes de sua atuação ilegítima.

Eficiência não substitui legalidade

É inaceitável que a busca pela eficiência se sobreponha à legalidade e à justiça. A informatização dos sistemas administrativos não pode anular garantias fundamentais. A Constituição não delega ao algoritmo a função de julgar.

Quando o processo administrativo deixa de ser instrumento de defesa e passa a ser uma formalidade vazia, ele se transforma em simulação de legalidade – uma fachada que apenas disfarça o arbítrio.

Estratégia jurídica diante do vício

Por isso, toda vez que um advogado se depara com um indeferimento sumário por suposta intempestividade não fundamentada ou declarada automaticamente, deve investigar a origem do vício, exigir a comprovação formal da data de protocolo e identificar se o prazo recursal se encerrava em dia útil ou não.

A partir daí, a tese a ser adotada é objetiva: houve vício insanável, violação ao devido processo legal e nulidade absoluta do processo a partir da omissão na apreciação da defesa ou recurso. Não há espaço para reaproveitamento processual.

O processo administrativo não é um simulacro

Essa tese não apenas protege o direito de defesa, mas reafirma que o processo administrativo de trânsito não é um simulacro de justiça.

É um espaço jurídico de controle estatal legítimo que deve, obrigatoriamente, respeitar os princípios constitucionais. O que não for decidido com base no devido processo legal, não é decisão: é arbítrio travestido de norma.

Conclusão: o erro técnico como desrespeito institucional

Portanto, a prática reiterada dos DETRANs de desconsiderar a tempestividade de defesas e recursos, sem qualquer análise concreta ou remessa ao CETRAN, representa não apenas erro técnico, mas desrespeito institucional à legalidade e à função constitucional dos órgãos julgadores.

E deve ser combatida com rigor, sob pena de naturalizarmos um sistema de julgamento automatizado e cego, onde o algoritmo substitui o juiz e a defesa se torna uma ficção.