Quando o próprio Judiciário impede o acesso à verdade dos fatos, a sentença nasce nula.
O Cenário Prático
Imagine a seguinte situação — e ela é mais comum do que deveria:
Um cidadão, ao ser surpreendido com a suspensão de sua CNH, ingressa judicialmente alegando não ter recebido as notificações obrigatórias durante o processo administrativo. Pede, de forma clara e fundamentada, que o DETRAN junte aos autos os comprovantes de envio das notificações. Mas o pedido é indeferido pelo juiz, que considera a solicitação “desnecessária”.
O desfecho?
A ação é julgada improcedente, sob o argumento de que não há provas de irregularidade no processo de suspensão. Sim: o juiz impediu a produção da prova e depois cobrou sua ausência como fundamento para negar o direito.
Por que isso é juridicamente inaceitável?
Porque, segundo a jurisprudência consolidada do STJ:
“Configura-se cerceamento de defesa quando o Juízo indefere a produção das provas requeridas oportunamente pela parte, mas profere julgamento que lhe é desfavorável por ausência de provas.” (AgInt nos EDcl nos EAREsp 1.790.144/GO, Rel. Min. Nancy Andrighi)
Esse é o coração da tese: a parte não pode ser punida pela ausência de uma prova cuja produção foi negada pelo próprio magistrado. O raciocínio contrário é incongruente, autorreferente e inconstitucional.
Desconstruindo a Lógica Adversa
Vamos aplicar a Estratégia de Ataque Direto, desmontando o argumento com precisão cirúrgica:
1. Incongruência
Se a sentença exige prova documental do envio das notificações, mas o juiz impediu que essa prova fosse produzida, estamos diante de uma contradição lógica e processual. O Estado exige aquilo que o próprio Estado impediu de realizar.
2. Falsa Causa
O juiz presume que, por constar nos autos uma informação genérica do DETRAN (como um “print” de sistema interno), houve ciência válida. Mas isso não prova envio, nem recebimento, muito menos ciência real. A presunção de regularidade administrativa não supre o dever de produção probatória.
3. Redução ao Absurdo
Aceitar essa lógica seria o mesmo que admitir que o Estado pode simplesmente não notificar o cidadão, se recusar a provar que notificou, e ainda assim punir por inércia dele. Isso aniquila o contraditório e transforma o Judiciário em mero homologador das alegações administrativas, sem qualquer controle efetivo.
Fundamentos Jurídicos da Tese
- Art. 5º, LV, da CF – garante o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes.
- Art. 369 e 370 do CPC – asseguram o direito à produção de todas as provas necessárias ao esclarecimento dos fatos.
- Art. 2º, X, da Lei nº 9.784/1999 – reforça o direito à produção de provas nos processos administrativos.
- Art. 282 do CTB – exige a expedição e comprovação das notificações em processo de suspensão da CNH.
- Jurisprudência STJ – já reconheceu como cerceamento de defesa a negativa de provas seguida de improcedência com base na ausência dessas mesmas provas.
Aplicação Prática: Defesa contra Suspensão do Direito de Dirigir
Quando o DETRAN ou CETRAN se recusam a juntar os avisos de recebimento, códigos de rastreio ou qualquer documento que demonstre efetivamente o envio das notificações, cabe ao Judiciário determinar a produção da prova, e não presumir sua existência.
Se o magistrado indefere essa prova e julga improcedente por falta de elementos, a sentença é nula. E o processo deve ser reaberto, com nova instrução e análise à luz do contraditório.
Antecipando as Objeções do DETRAN
1. “As informações do sistema DETRAN gozam de presunção de legitimidade.”
Resposta:
Sim, mas presunção não é prova — e presunções são relativas (juris tantum). Quando há impugnação formal à regularidade da notificação, o órgão deve provar o envio. A simples afirmação administrativa, desacompanhada de documentos objetivos, não basta.
2.“O condutor não apresentou indício de fraude.”
Resposta:
A falta de notificação não é fraude, mas vício de forma que compromete a legalidade do processo. E o condutor não pode apresentar documento que nunca recebeu. Cabe ao DETRAN exibir o que está sob sua guarda, conforme o art. 37 da Lei 9.784/1999.
3. “O juiz pode indeferir provas que julgar desnecessárias.”
Resposta:
Sim — desde que não fundamente a improcedência com base na ausência dessa prova indeferida. Do contrário, comete cerceamento de defesa e afronta a lógica processual.
Conclusão
A nulidade da sentença que indefere produção de prova essencial e, contraditoriamente, julga improcedente por ausência da mesma prova, é inevitável.
Mais do que um erro técnico, trata-se de uma violação estrutural ao contraditório e à ampla defesa, que corrói a integridade do processo judicial e fere a isonomia frente ao poder punitivo estatal.
Não se combate presunção com silêncio judicial. Exige-se prova, contraditório e respeito ao processo.Improcedência por Falta de Provas que o Próprio Juiz Impediu Produzir? Isso é Cerceamento de Defesa, Sim.