No contexto do direito administrativo sancionador, especialmente no âmbito do trânsito, a imposição de penalidades não pode ocorrer de forma automática ou presumida.
A legalidade, a motivação e o respeito ao devido processo legal não são meras formalidades — são pilares inegociáveis para a validade dos atos administrativos que impõem sanções a condutores e proprietários de veículos.
A imposição da penalidade de suspensão do direito de dirigir, por exemplo, exige a formalização de um ato administrativo motivado, com observância estrita ao procedimento estabelecido pelo Código de Trânsito Brasileiro (CTB), pela Lei nº 9.784/1999 e pelas Resoluções do CONTRAN que regulam a matéria.
A Necessidade de Ato Administrativo de Aplicação
Nos termos do artigo 265 do CTB, a penalidade de suspensão somente pode ser aplicada mediante decisão motivada da autoridade de trânsito, e tal exigência é reforçada pelo artigo 50, inciso I e II, da Lei nº 9.784/1999, que exige motivação explícita, clara e congruente nos atos sancionadores, com indicação dos fatos e dos fundamentos jurídicos que os embasam.
Contudo, o que se verifica em inúmeros processos administrativos é a supressão dessa etapa essencial, com a expedição direta de notificações de penalidade sem qualquer decisão anterior formalizando a aplicação da sanção.
Nesse contexto, a simples notificação não supre a ausência do ato administrativo. A notificação é meio de comunicação, não de manifestação de vontade estatal.
Jurisprudência do STJ: O Ato é Essencial
A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça tem sido enfática ao reconhecer que a inobservância do iter processual e a ausência de ato administrativo válido acarreta a nulidade da penalidade.
Destaca-se o recente acórdão no REsp 1.975.036/GO, da relatoria do Ministro Herman Benjamin, no qual o Tribunal reafirmou que:
“A garantia da plena defesa implica a observância do rito, as cientificações necessárias, a oportunidade de objetar a acusação desde o seu nascedouro [...]. Igualmente, entende-se pela ilegalidade da sanção, por cerceamento de defesa, a inobservância dos prazos estabelecidos no iter procedimental.”(REsp 1.975.036/GO, DJe 30/05/2022)
A lógica se aplica integralmente à ausência de ato formal de aplicação da penalidade: sem ele, não há exercício legítimo do poder sancionador.
3. Súmula 312/STJ e o Devido Processo Administrativo
A exigência de duas notificações — uma para apresentação de defesa da autuação e outra para ciência da penalidade — consagrada na Súmula 312/STJ, reforça o entendimento de que há etapas processuais distintas e obrigatórias no curso do processo administrativo.
A ausência de ato administrativo entre essas duas fases desconfigura a sequência legalmente prevista e compromete a validade do processo.
Súmula 312/STJ:
“No processo administrativo para imposição de multa de trânsito, são necessárias as notificações da autuação e da aplicação da pena decorrente da infração.”
O que se extrai da súmula e da jurisprudência correlata é que a aplicação da penalidade é uma etapa própria, que exige manifestação expressa da autoridade, não sendo admissível sua presunção com base na simples expedição de notificação.
4. O Dever de Motivação e Vedação à Motivação Tardia
A motivação do ato não pode ser construída posteriormente, como alertado pelo próprio STJ:
“Não se admite motivação do ato após a sua prática, por ofensa direta aos princípios da legalidade e da moralidade, pois abriria espaço para a fabricação de razões em desfavor do administrado.”(AgInt no AREsp 1.108.757/PI, Min. Napoleão Nunes Maia Filho, DJe 10/09/2018)
A tentativa de suprir a ausência de decisão motivada por meio de relatórios técnicos juntados apenas em sede de contestação judicial, além de indevida, revela desprezo pelo devido processo administrativo.
A autoridade que impõe a penalidade deve fazê-lo dentro do procedimento e no momento legalmente oportuno — antes da notificação da penalidade, e com motivação clara, completa e acessível.
A Nulidade Como Consequência Inevitável
Diante de tais violações, a consequência jurídica natural é a declaração de nulidade da penalidade.
A ausência de ato administrativo válido implica não apenas a inexistência de fundamento jurídico para a penalidade, mas também a quebra da confiança legítima no Estado de Direito.
Não se trata de mero vício formal: é um vício substancial que compromete a própria existência da sanção.
A própria lógica do processo administrativo impõe essa conclusão. Como pode haver defesa sem acusação e formal? Como se submeter a controle uma penalidade que sequer foi aplicada validamente?
Conclusão
A aplicação de sanções no âmbito do direito de trânsito exige rigor, legalidade e respeito ao devido processo.
A ausência de um ato administrativo válido e motivado rompe com esses princípios e contamina todo o procedimento.
Em um Estado Democrático de Direito, nenhuma sanção pode subsistir sem ato legal que a sustente.