O sistema de dupla notificação no processo administrativo de trânsito representa um dos pilares fundamentais das garantias processuais do cidadão.
Sua correta compreensão e aplicação são essenciais para a atuação eficaz do advogado especializado em direito de trânsito, especialmente considerando as múltiplas possibilidades de nulidades processuais decorrentes de sua inobservância.
Fundamentos Legais da Dupla Notificação
A exigência da dupla notificação encontra respaldo não apenas no Código de Trânsito Brasileiro, mas também nos princípios constitucionais do contraditório e da ampla defesa.
Art. 281-A. Na notificação de autuação e no auto de infração, quando valer como notificação de autuação, deverá constar o prazo para apresentação de defesa prévia, que não será inferior a 30 (trinta) dias, contado da data de expedição da notificação.
Art. 282. Caso a defesa prévia seja indeferida ou não seja apresentada no prazo estabelecido, será aplicada a penalidade e expedida notificação ao proprietário do veículo ou ao infrator, por remessa postal ou por qualquer outro meio tecnológico hábil que assegure a ciência da imposição da penalidade.
Este sistema bifásico de notificação garante ao condutor tanto a ciência da autuação quanto a oportunidade de defesa prévia, seguida da notificação da penalidade aplicada, configurando um procedimento que respeita integralmente o devido processo legal administrativo.
A notificação específica do condutor, nas infrações em que é o responsável, representa um elemento vital da validade processual administrativa. Tal notificação não é apenas uma etapa burocrática, mas sim um pilar fundamental que garante a legalidade do procedimento.
O direito constitucional de defesa do condutor só pode ser plenamente exercido mediante notificação individualizada, sendo insuficiente qualquer comunicação direcionada apenas ao proprietário do veículo. Esta distinção é crucial para a preservação das garantias processuais.
Quando não há esta notificação individualizada, todo o procedimento sancionatório fica irremediavelmente comprometido, gerando nulidade absoluta por infringir diretamente os princípios basilares do contraditório e da ampla defesa.
A Súmula 312 do STJ e sua Aplicação Prática
A Súmula 312 do Superior Tribunal de Justiça representa mais do que mera orientação jurisprudencial - constitui verdadeiro pilar normativo que ampliou as teses de defesa para quem atua na prática da advocacia de trânsito.
Súmula 312 do STJ
No processo administrativo para imposição de multa de trânsito, são necessárias as notificações da autuação e da aplicação da pena decorrente da infração.
Para o profissional atuante na área, a compreensão da força vinculante desta súmula é fundamental.
Ela não apenas estabelece requisito formal, mas materializa garantia constitucional do devido processo legal administrativo.
PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. AGRAVO INTERNO NO RECURSO ESPECIAL. SUPOSTA VIOLAÇÃO AO ARTIGO 1.022 DO CPC. NÃO CARACTERIZADA. ARGUMENTAÇÃO GENÉRICA. SÚMULA 284/STF. INFRAÇÃO DE TRÂNSITO. NECESSIDADE DE PRÉVIA NOTIFICAÇÃO DO CONDUTOR. DUPLA NOTIFICAÇÃO. ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE ORIGEM EM CONSONÂNCIA COM A JURISPRUDÊNCIA DESTA CORTE. SÚMULA 568/STJ. AGRAVO NÃO PROVIDO. 1. Quanto à alegação de negativa de prestação jurisdicional, das razões do recurso especial, verifica-se que o agravante apresentou apenas razões genéricas, sem especificação da suposta negativa de prestação jurisdicional em que incorreu o Tribunal de origem, incidindo, pois, o óbice da Súmula 284/STF. 2. O entendimento consolidado desta Corte é no sentido de que o procedimento administrativo para imposição de multa por infração de trânsito deve englobar, sob pena de ofensa aos princípios do contraditório e da ampla defesa, duas notificações, a primeira, no momento da lavratura do auto de infração, ocasião em que é aberto prazo de trinta dias para o oferecimento de defesa prévia; e a segunda, por ocasião da aplicação da penalidade pela autoridade de trânsito, entendimento sintetizado na Súmula 312/STJ 3. Esta Corte de Justiça possui jurisprudência no sentido de que, tratando-se de infração de trânsito de responsabilidade exclusiva do condutor do veículo, deve este ser notificado acerca da imposição da penalidade, a fim de que lhe seja oportunizada a apresentação de recurso, não bastando a cientificação do proprietário do automóvel. 4. Agravo interno não provido. (STJ - AgInt no REsp: 1875132 RS 2020/0117201-9, Relator: Ministro MAURO CAMPBELL MARQUES, Data de Julgamento: 12/04/2021, T2 - SEGUNDA TURMA, Data de Publicação: DJe 15/04/2021)
Na prática advocatícia, isto significa que a ausência de qualquer das notificações configura nulidade absoluta - argumento central que deve ser explorado em toda defesa administrativa.
O advogado especializado deve estar atento ao caráter bifásico do procedimento: primeiro, a notificação da autuação, garantindo o direito à defesa prévia; segundo, a notificação da penalidade, possibilitando a interposição de recurso.
A inobservância de qualquer dessas fases pela Administração abre caminho para robusta argumentação defensiva, com alta probabilidade de êxito na anulação do processo administrativo sancionador.
Este entendimento jurisprudencial, ao elevar a dupla notificação à condição de pressuposto de validade do processo administrativo de trânsito, fornece ao advogado instrumento uma possibilidade de tese de defesa de ampla aceitação perante o Poder Judiciário.
Em termos estratégicos, recomenda-se sua arguição como preliminar em recursos administrativos e ações judiciais, caso também se discuta o mérito do autuação.
Distinção entre Sujeitos Passivos
No âmbito do direito administrativo de trânsito, quando nos referimos a sujeitos passivos distintos, estamos diferenciando especialmente o proprietário do veículo e condutor, cada qual com seu próprio conjunto de direitos e responsabilidades.
Art. 257. As penalidades serão impostas ao condutor, ao proprietário do veículo, ao embarcador e ao transportador, salvo os casos de descumprimento de obrigações e deveres impostos a pessoas físicas ou jurídicas expressamente mencionados neste Código.
§ 1º. Aos proprietários e condutores de veículos serão impostas concomitantemente as penalidades de que trata este Código toda vez que houver responsabilidade solidária em infração dos preceitos que lhes couber observar, respondendo cada um de per si pela falta em comum que lhes for atribuída.
§ 2º. Ao proprietário caberá sempre a responsabilidade pela infração referente à prévia regularização e preenchimento das formalidades e condições exigidas para o trânsito do veículo na via terrestre, conservação e inalterabilidade de suas características, componentes, agregados, habilitação legal e compatível de seus condutores, quando esta for exigida, e outras disposições que deva observar.
§ 3º. Ao condutor caberá a responsabilidade pelas infrações decorrentes de atos praticados na direção do veículo.
A distinção entre proprietário e condutor, bem como suas respectivas responsabilidades, determina diferentes estratégias de defesa e argumentação, especialmente quanto à necessidade de notificações específicas para cada um.
À luz do Código de Trânsito Brasileiro, é fundamental estabelecer uma definição precisa dos termos "sujeitos passivos distintos" e "defesas distintas".
Esta distinção tem relevância prática, uma vez que cada sujeito possui argumentos defensivos próprios e exclusivos.
Cabe ao proprietário do veículo contestar aspectos relativos à titularidade e corresponsabilidade, ao passo que o condutor tem legitimidade para questionar elementos específicos do ato de direção e das circunstâncias da infração.
Em consequência, a eficácia do processo administrativo de trânsito está diretamente vinculada ao reconhecimento e respeito a esta dualidade de defesas, sendo este um elemento essencial para assegurar as garantias processuais em sua plenitude.
Nulidades Processuais e seus Efeitos
A ausência ou irregularidade nas notificações gera nulidades processuais que podem contaminar todo o procedimento administrativo.
O advogado deve estar atento às diferentes hipóteses de nulidade e seus efeitos cascata, que podem resultar no cancelamento de penalidades que estão conectadas ao ato originário.
A falta de notificação específica ao condutor quebra a ordem natural do processo administrativo, invalidando não só a autuação inicial, mas também se estendendo a todos os procedimentos administrativos subsequentes que dela dependem.
ADMINISTRATIVO. INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE DEMANDAS REPETITIVAS. CÓDIGO DE TRÂNSITO BRASILEIRO. INFRAÇÃO DE TRÂNSITO. NOTIFICAÇÃO DA IMPOSIÇÃO DE PENALIDADE. ENVIO AO CONDUTOR INFRATOR. É obrigatória a remessa da notificação de imposição de penalidade de multa (NIP) para o proprietário do veículo e para o condutor infrator, quando estes forem pessoas distintas. (TRF4, IRDR 5047424-37.2019.4.04.0000, Segunda Seção, Relator SÉRGIO RENATO TEJADA GARCIA, juntado aos autos em 16/08/2022)
A natureza bifásica do procedimento sancionatório estabelecido pelo CTB cria um encadeamento processual, onde a validade de cada ato subsequente depende inexoravelmente da regularidade dos atos anteriores.
Por exemplo, caso o condutor esteja com a CNH suspensa, tendo sido autuado por dirigir com a CNH suspensa, correndo o risco de ter a CNH cassada, se porventura houve a anulação da suspensão do direito de dirigir, todos os atos decorrentes dela devem ser cancelados.
Assim, a ausência de qualquer das duas notificações legalmente exigidas - cada qual com sua função processual específica e insubstituível - contamina irremediavelmente toda a cadeia de atos administrativos posteriores, resultando na nulidade absoluta do processo e do objeto nele discutido.
Estratégias de Defesa e Argumentação
O domínio das possibilidades de argumentação relacionadas à notificação no processo administrativo de trânsito exige uma análise minuciosa de cada etapa do procedimento notificatório.
A nulidade pode decorrer tanto da ausência de uma única notificação quanto da inexistência de todas elas, incluindo a falta de comunicação sobre o julgamento de recursos na JARI ou CETRAN.
Art. 288. Das decisões da JARI cabe recurso a ser interposto, na forma do artigo seguinte, no prazo de trinta dias contado da publicação ou da notificação da decisão.
Importante ressaltar que a mera existência de nulidade processual nem sempre justifica o ingresso com recurso administrativo.
Nos casos em que o condutor não foi devidamente cientificado, deve-se avaliar estrategicamente a melhor via de impugnação, considerando o princípio pas de nullité sans grief (não há nulidade sem prejuízo).
Os prazos decadenciais estabelecidos em lei são outro aspecto crucial, pois uma vez expirados, impedem a renovação dos atos de notificação.
Art. 281. A autoridade de trânsito, na esfera da competência estabelecida neste Código e dentro de sua circunscrição, julgará a consistência do auto de infração e aplicará a penalidade cabível.
II - se, no prazo máximo de trinta dias, não for expedida a notificação da autuação.
Esta limitação temporal torna-se o principal argumento defensivo na sustentação jurídica da nulidade do processo administrativo de apuração do AIT, pois inviável a renovação da Notificação da Autuação dentro dos prazos estabelecidos.
Conclusão e Considerações Práticas
A efetiva defesa dos direitos do "condutor-não proprietário" no processo de multa de trânsito depende da correta aplicação do sistema de dupla notificação, sendo esta uma das principais causas de nulidade de infrações e penalidades.
O expressivo número de processos anulados por vícios em procedimentos de notificação demonstra a relevância prática desta tese defensiva.
O domínio aprofundado deste tema é requisito essencial para o profissional que atua na defesa do direito de dirigir e em processos de multas de trânsito.
O advogado especializado deve não apenas manter-se atualizado quanto às interpretações jurisprudenciais, mas também dominar a aplicação prática desta tese para garantir a máxima efetividade na proteção dos direitos de seus clientes.
Referências
Súmula 312 do STJ: https://www.stj.jus.br/docs_internet/revista/eletronica/stj-revista-sumulas-2011_25_capSumula312.pdf.
Código de Trânsito Brasileiro
https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9503compilado.htm
TRF4, IRDR 5047424-37.2019.4.04.0000, Segunda Seção, Relator SÉRGIO RENATO TEJADA GARCIA, juntado aos autos em 16/08/2022:
https://www.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/trf-4/3625539653
STJ - AgInt no REsp: 1875132 RS 2020/0117201-9, Relator: Ministro MAURO CAMPBELL MARQUES, Data de Julgamento: 12/04/2021, T2 - SEGUNDA TURMA, Data de Publicação: DJe 15/04/2021
https://www.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/stj/1205698468/inteiro-teor-1205698487